terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A República Velha I





Entrevista Boris Fausto/tvescola

Como surgiu a República?
A partir de 1870, formou-se no Brasil um movimento que pretendia, por revolução ou por acordo, proclamar a República. Havia várias tendências. O movimento republicano de São Paulo, onde se formou o Partido Republicano Paulista, era muito distinto, por exemplo, do movimento republicano carioca. O movimento do Rio de Janeiro era mais radical. O de São Paulo evitava certas questões, sobretudo a da escravidão, concentrando-se na idéia de uma República federativa, com um grau acentuado de autonomia para as províncias. A elite cafeeira queria determinar os rumos de sua economia, sem as limitações da ação do Império. Ao mesmo tempo, crescia entre os militares, cuja cúpula era muito influenciada pela ideologia positivista, a idéia de que a monarquia emperrava o progresso do Brasil, limitava a industrialização nascente e estava ligada à escravidão. Eles queriam uma República mais autoritária, com mais poderes para o presidente. A República resultou da aliança dessas duas forças: de um lado o Exército; de outro, a elite política de São Paulo. A derrubada do imperador, em 15 de novembro de 1889, não foi um episódio épico, tal como é pintado nos quadros históricos. Nem teve participação popular. Embora relutante, o marechal Deodoro da Fonseca acabou cedendo à pressão dos quadros jovens do Exército. Ao longo do tempo, as conseqüências foram importantes: houve um Brasil da monarquia e outro da Primeira República, mas a passagem entre ambos é mais um exemplo de “transição transada”, sem grandes abalos, na história brasileira.

República

Como era o Brasil no final do século 19?
Era um país de fronteiras definidas, não muito diferente do Brasil de hoje. Porém, mesmo no início do século 20, havia vastas regiões não ocupadas – como grandes áreas do Oeste de São Paulo, onde viviam índios. Do ponto de vista da produção, houve um grande impulso no Centro-Sul, basicamente resultante do café, e também no Sul, com a instalação da pequena propriedade. Essa pequena propriedade, dedicada ao cultivo de produtos como trigo e uva e à fabricação de vinho, se baseava na imigração de colonos alemães, que começaram a chegar ali desde 1820, antes da imigração em massa que ocorreria no próprio século 19. No Nordeste, talvez o fenômeno mais interessante seja a alteração do sistema de produção de açúcar, com a melhoria das técnicas, sobretudo a partir da construção dos grandes engenhos novos, chamados de engenhos centrais.

Quais as características do começo do período republicano?
A Constituição republicana de 1891 adotou o modelo da República federativa, isto é, o Brasil foi dividido em vários estados, reunidos numa federação. Houve uma descentralização dos poderes, das atribuições e dos direitos dos estados, que ganharam autonomia para contrair empréstimos no exterior e constituir suas próprias forças públicas. Sob o aspecto social e ideológico, a proclamação da República se deveu, como vimos, a duas forças muito diferentes, os militares e as elites civis dos grandes estados. Nos primeiros tempos, predominaram os militares – basta pensar nos governos de Deodoro e Floriano –, mas logo depois, a partir de Prudente de Morais, instituiu-se uma República civil.

De onde veio o modelo da Primeira República?
A Constituição de 1891 adotou em grandes linhas o modelo da Constituição dos Estados Unidos, cuja característica é o presidencialismo, quer dizer, o presidente é eleito com mandato e tem poderes independentes do Congresso. Além disso, também seguindo o modelo americano, houve uma divisão entre três poderes: o Executivo, que executa as leis ou encaminha projetos de lei para o Congresso; o Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado), que faz as leis; e o Judiciário, que julga conflitos entre os cidadãos e interpreta as leis, inclusive a Constituição.

Como era o sistema eleitoral?
Tal como ocorria nos últimos anos do Império, o voto continuou a ser permitido apenas às pessoas alfabetizadas, e não era secreto. Além disso, não existia uma Justiça Eleitoral, como existe hoje, para fiscalizar as eleições. Nesse quadro, dificilmente o resultado das eleições correspondia às intenções reais dos cidadãos. A participação dos eleitores era muito pequena, mas isso não surpreende, pois a situação era idêntica em outros países, mesmo nos mais desenvolvidos.

E quanto às relações do Estado com a Igreja Católica?
Nesse campo a mudança foi grande. No Império, o regime vigente era de padroado, isto é, o Estado pagava o clero. Mas as elites civis republicanas, sob forte influência de idéias liberais, cientificistas e laicas, não eram compostas de gente religiosa. Logo no começo da Primeira República aprovaram-se leis que tiraram da Igreja certas atribuições. Por exemplo: embora o casamento religioso continuasse a existir, o casamento civil, feito por um juiz de paz num cartório, passou a ser o único legitimamente reconhecido. O mesmo se deu com o registro de nascimento, que deixou de ser feito nas paróquias para ser feito em um cartório de registro civil. E houve a secularização dos cemitérios, isto é, eles deixaram de pertencer a uma religião para se abrir a todas as religiões, ou até a quem não tivesse religião. Houve de fato uma separação entre Igreja e Estado, e a Igreja Católica deixou de ser a oficial. De certo modo, isso foi mais um bem do que um mal para a Igreja, que se livrou da subordinação e precisou reforçar seus quadros, melhorar sua atividade e aparecer como força espiritual autônoma.

Qual era a situação no meio rural?
No começo do século 20, algumas regiões progrediam muito, mas amplas extensões no campo eram extremamente pobres, carentes, com populações que ficaram à margem do progresso. É o caso de quase todos os estados do Nordeste, onde a grande maioria das pessoas servia de mão-de-obra a grandes proprietários ou cultivava uma terrinha, muito precariamente.

Foi nessa época que surgiu o arraial de Canudos?
Aconteceram alguns episódios sociais importantes, como o arraial de Canudos, que se instalou no norte da Bahia por volta de 1897, tendo como personagem central uma figura urbana, Antônio Conselheiro, um homem místico que fazia uma pregação monarquista, contra a República. Sertanejos atacados pela seca e pelas más condições de vida buscaram no arraial, em um sistema comunitário, uma perspectiva de melhoria. O fenômeno era produto das enormes carências da população sertaneja, mas o governo da República encarou-o como uma ameaça monarquista e resolveu liquidá-lo. Essa decisão desgastou o governo de Prudente de Morais, o primeiro presidente civil, pois, surpreendentemente, sucessivas operações militares fracassaram ao enfrentar o arraial de Canudos, antes de conseguir dizimar quase toda sua população.

O que foi a política do café-com-leite?
O pitoresco nome de república café-com-leite se refere ao predomínio de dois estados, na Primeira República: São Paulo e Minas Gerais, que tinham por base econômica o café e o leite. Mas nem tudo no Brasil, do ponto de vista político, se resumia à aliança entre São Paulo e Minas. Também há quem se refira a esse período como “república dos coronéis”, pelo predomínio da figura do coronel – título dado a antigos coronéis da Guarda Nacional que controlavam uma área, arregimentavam a população e seus votos. Mas de fato podemos dizer que tínhamos uma república oligárquica. Em sua origem, a palavra oligarquia significa governo de poucos. A Primeira República foi exatamente isso: dominada por grupos concentrados nos estados maiores, que, organizados em partidos estaduais, decidiam quem seria o presidente. Era uma espécie de “clube dos notáveis”, no qual a população praticamente não influía.

O coronelismo existiu em todas as regiões?
É comum se pensar no coronelismo como um fenômeno do Nordeste, mas ele existiu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, só que de maneira diferente, por exemplo, daquele de certas áreas da Bahia, onde verdadeiros “senhores da guerra” ditavam as ordens, à frente de seus exércitos privados, ameaçando até o governador do estado. Já no Rio Grande do Sul, muitos dos coronéis não eram proprietários de terra, e sim comerciantes.

Os estados eram de fato autônomos?
Quando falamos em autonomia dos estados na Primeira República, é preciso pensar que existiam alguns de primeira grandeza, estados fortes, e outros de segunda ou terceira grandeza, estados fracos. Os interesses de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul e, em certa medida, Bahia e Pernambuco, tinham um peso bem específico.

Qual era o panorama econômico da época?
A Primeira República foi caracterizada pela agricultura de exportação, na qual o café ocupava o posto mais importante. A partir de 1880, e por quase trinta anos, a borracha da Amazônia foi o segundo produto de exportação, superando o açúcar. Era grande a demanda desse produto no que hoje chamamos de Primeiro Mundo: no início, quando se difundiu a moda da bicicleta, com pneus de borracha; e, depois, com o surgimento do automóvel. A riqueza gerada por ela mudou a fisionomia de Manaus e Belém, as capitais do Norte. Quem nunca teve benefícios foi o seringueiro, que trabalhava na mata. Mas por volta de 1910 começou a crise; em primeiro lugar pela competição das plantações inglesas da Malásia, na Ásia; além disso ocorreu aqui o ataque de uma série de pragas. Foi-se assim toda a antiga riqueza, mas restou muita beleza, como o Teatro Amazonas, em Manaus, ou o Teatro da Paz, em Belém, restaurados recentemente.

Por que houve imigração?
Desde meados de 1870, se iniciou um fenômeno de imigração em massa, principalmente de colonos italianos; em parte eles se dirigiam para o Sul, onde já havia imigrantes alemães. Outros se estabeleceram no Centro-Sul, especialmente em São Paulo. Esse movimento se deveu a dois fatores: diante das condições de pobreza na Europa muitas pessoas sonhavam com “fazer a América”, como se dizia na época; além disso, com a abolição, os fazendeiros precisavam substituir a mão-de-obra dos escravos. Para atrair imigrantes da Europa, foram mobilizados muitos recursos. Em São Paulo foi construída a Hospedaria dos Imigrantes (hoje Museu do Imigrante), onde eles eram recebidos e depois encaminhados para as fazendas de café. Mas muitos imigrantes permaneceram nas cidades, ou retornaram do campo após uma experiência. Viam nas cidades maiores oportunidades de ganho e mais liberdade do que no duro regime de trabalho das fazendas de café. Depois dos italianos vieram os espanhóis e, nos primeiros anos do século 20, começaram a chegar os japoneses – estes de fato se fixaram por muito tempo no campo.

Como fenômeno social, a imigração deu certo no Brasil?
Em termos gerais, sim, mas isso não significa que todos tenham sido bem-sucedidos. Muita gente permaneceu pobre no Brasil, ou voltou para seus países. A vida do colono do café era difícil, embora existissem oportunidades de ascensão social. Muitos imigrantes conseguiram avançar na vida e integrar-se à sociedade brasileira.

Fonte:
Entrevista com Boris Fausto: Disponível em http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/historia/entrevista_1a.asp, acesso em 13 jan 2009.

Império II



Entrevista: Boris Fausto/tvescola

Qual a importância da escravidão para a produção do café?
Uma frase muito comum no Império afirmava que o Brasil é o café e o café é o negro. A produção do café, que ganhou importância enorme por volta de 1830, dependia do trabalho escravo. Havia incentivo para produtores e exportadores, e o interesse pela bebida era crescente em alguns mercados consumidores, especialmente Estados Unidos e Europa. O Vale do Paraíba foi a primeira região em que a produção se expandiu: inicialmente no território da província do Rio de Janeiro, depois na província de São Paulo. Na última década do Império, o café representava 60% do total de exportações do Brasil. Isso ocorreu enquanto o açúcar, produto muito importante no Brasil Colônia, entrava em crise. Os velhos engenhos foram desaparecendo, o açúcar brasileiro começou a sofrer cada vez mais a concorrência do que era produzido nas possessões francesas das Antilhas e em outras partes do globo; além disso, na Europa, cada vez mais se utilizava açúcar extraído da beterraba.

Por que a produção do café se deslocou?
O percurso da economia do café variou, ao longo do século 19. Iniciou-se no Vale do Paraíba e foi se deslocando para a região paulista de Campinas, depois cada vez mais para o oeste da província. O espaço geográfico da produção do Vale do Paraíba era limitado; o solo, que já não era de boa qualidade, começou a sofrer o processo de erosão, pois na época não havia técnicas de conservação do solo, nem preocupação com isso. Pessoas que tinham acumulado fortuna em atividades urbanas, na província de São Paulo, começaram a plantar em uma nova região, no Oeste paulista. Ali havia um espaço muito maior para se plantar e a terra era de qualidade superior, a chamada terra vermelha, que os imigrantes italianos chamaram de terra rossa (“terra vermelha”, em italiano, mas que ficou por isso conhecida como terra roxa). Conscientes do momento histórico que estavam vivendo, os cafeicultores do Oeste paulista se deram conta de que não seria possível contar eternamente com a escravatura e começaram a substituir a mão-de-obra escrava pela dos imigrantes. Os cafeicultores do Vale do Paraíba, os velhos barões do café, não conseguiram se adaptar aos novos tempos e acabaram se arruinando com o fim do sistema escravista.

Qual o papel do trabalho escravo na sociedade brasileira?
A sociedade brasileira sempre foi muito estratificada. Existiam no alto as elites, abaixo delas uma classe média urbana que progressivamente ganhava força e, mais abaixo, os brancos pobres. Na base, ficavam os escravos, considerados como “coisas”, e também os negros libertos. A penetração da escravidão na sociedade brasileira foi profunda por várias razões. O comércio de escravos era um grande negócio; mesmo antes da vinda de Dom João VI, muitas das fortunas acumuladas no Rio de Janeiro se originavam do tráfico de escravos. Na Colônia, o trabalho manual era muito desvalorizado, e assim se recorria aos escravos não só para trabalhar, por exemplo, nas grandes fazendas de açúcar, mas também em todo tipo de tarefa doméstica. Todo mundo sonhava em ter alguém que trabalhasse para si, e isso se refere tanto ao senhor de engenho quanto ao pequeno personagem de classe média.

Quando a escravidão começou a ser discutida?
Esse quadro começou a sofrer abalos quando, na esfera internacional, o sistema escravista entrou em crise – sobretudo porque, com a industrialização da Inglaterra, o comércio de escravos deixou de interessar aos ingleses. Eles procuraram criar um mercado internacional de mão-de-obra livre, muito pobre e muito explorada. Começaram a combater a escravidão em todo o mundo e a apreender os navios negreiros, sobretudo no Atlântico, contrariando os interesses da elite brasileira que vivia da escravidão. Diante da pressão inglesa, as elites brasileiras não tomavam decisões, pensando mais ou menos assim: “vamos ter de acabar com a escravidão, mas quanto mais demorar, melhor”. Um bom exemplo disso: por pressão inglesa, o tráfico de escravos foi extinto, por uma lei de 1831, mas essa lei não foi cumprida, era uma lei “para inglês ver”.

Como ocorreu afinal a abolição?
Quase vinte anos depois, em 1850, o Brasil foi levado a extinguir de verdade o tráfico internacional. O governo imperial tomou medidas duras, prendeu gente importante, e o tráfico externo se extinguiu. Mas surgiu o tráfico interno, com a venda de escravos das áreas mais pobres para as que estavam se desenvolvendo. De qualquer maneira, a partir dessa época ficou claro que era preciso pôr fim a esse regime. Dom Pedro, assim como alguns setores da elite, se empenharam em aprovar leis que fossem reduzindo o alcance da escravidão – houve a Lei do Ventre Livre, que libertava o filho de mãe escrava, depois a Lei do Sexagenário, que libertava os velhos acima de 60 anos, até se colocar a questão da abolição. Houve um movimento abolicionista branco significativo, com a presença de destacados nomes da elite brasileira, como Joaquim Nabuco. Ocorreram também insurreições de escravos em fazendas de São Paulo.

Como a sociedade acolheu os ex-escravos?
A abolição da escravatura se deu ainda no reinado de Dom Pedro II, em 1888, pela mão da princesa Isabel, que estava transitoriamente com as funções de regente. Representou um avanço, mas deixou também muitos problemas, porque não levou em conta a inclusão do negro, como cidadão, na sociedade brasileira. Os grandes fazendeiros de café optaram pelo imigrante europeu, e o negro perdeu seu lugar nas propriedades do Centro-Sul do país. Nem ao menos se cuidou de conceder-lhe terras, o negro ficou relegado às atividades marginais, em situações de subemprego, vítima de um pesado preconceito e sem a oportunidade de acesso à escola. Nesse processo, o preconceito contra o negro persiste até hoje.

Houve progressos no final do Império?
No período que vai de 1850 até o fim da monarquia o Brasil passou por um processo de modernização. Várias coisas foram feitas no sentido de obter uma integração maior do país, do ponto de vista financeiro e das comunicações. A integração financeira se fez principalmente por meio do grande avanço do sistema bancário. A integração espacial, geográfica, foi marcada pela introdução de um meio de transporte que representava uma revolução, a estrada de ferro. No Nordeste, a expansão da rede ferroviária esteve ligada a uma empresa inglesa, a Great Western, que interligou várias partes de Pernambuco e da Bahia. Mas o coração da expansão ferroviária durante o Império se situou em São Paulo e Rio de Janeiro, pois o café precisava chegar aos portos para ser exportado.

Como as ferrovias contribuíram para o comércio do café?
Há dois exemplos dessa expansão ferroviária ligada ao café. Um é a Estrada de Ferro Dom Pedro II, hoje Central do Brasil, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Era muito importante para os fazendeiros do Vale do Paraíba, que exportavam o café pelo porto do Rio de Janeiro – que na época foi bem melhorado, para permitir a entrada de navios de grande calado. Outro exemplo foi a São Paulo Railway (SPR), também um investimento inglês, que em uma grande façanha de engenharia ligou São Paulo a Santos pela Serra do Mar, a partir de 1867. Com isso surgia uma via muito mais eficiente e rápida para transportar o café, trazendo o progresso não só para o porto de Santos mas também para toda a região produtora de café do interior paulista e, sobretudo, para a cidade de São Paulo.

O que acontecia então na política externa?
Durante o século 19, a política externa brasileira gerou confrontos com seus vizinhos. Era uma época de formação dos Estados nacionais; Brasil, Argentina e Uruguai estavam em processo de consolidação como nação. A política de afirmação dos Estados nacionais acabou gerando um conflito de enormes proporções, a Guerra do Paraguai, também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, porque três países se aliaram contra o Paraguai: Brasil, Argentina e Uruguai. O conflito durou quase seis anos: começou com o incidente com um navio brasileiro, o Marquês de Olinda, no rio Paraguai, em 1864, e durou até 1870. O Paraguai foi arrasado, houve milhares de mortos brasileiros, argentinos e uruguaios, e não só nas batalhas. Epidemias como o cólera e a varíola mataram tanto ou mais gente do que os próprios combates. Muitas vezes se diz que a Inglaterra provocou a Guerra do Paraguai. Isso não é certo. Os ingleses dominavam economicamente os países da América do Sul, mas tinham interesse na estabilidade, e não em um grande conflito. A guerra foi provocada principalmente pelas rivalidades geopolíticas entre os países envolvidos.

Que conseqüências essa guerra trouxe para o Brasil?
Para os que viveram no final do século 19, a Guerra do Paraguai foi um marco: era como se houvesse um Brasil antes da guerra e outro depois dela. Por um lado, a sociedade ganhou certa consciência de que a escravidão era um problema grave; muitos escravos participaram da luta, alguns porque quiseram, outros porque foram obrigados. E assim se tornou evidente a contradição entre o soldado negro, a serviço da pátria, e o escravo negro. Por outro lado, a Guerra do Paraguai fortaleceu o Exército brasileiro, que ganhou prestígio ao vencer a guerra. No início, as tropas eram formadas principalmente por despreparados componentes da Guarda Nacional, cuja atuação foi um fracasso; mas com a entrada do Exército projetaram-se figuras como Osório e, sobretudo, Caxias, que iria se tornar patrono do Exército. A consciência do valor do militar se formou durante o conflito, por seu papel contrastante com algumas elites civis, em especial do Rio de Janeiro. Enquanto os militares iam para o campo de batalha, setores da elite civil enriqueciam com o fornecimento de alimentos e de material para a campanha.

Que fatores contribuíram para o fim do Império?
Entre os fatores que concorreram para a crise do Império e a derrubada de Dom Pedro II, em 1889, sobressai o fim da escravidão. Os grandes proprietários de escravos, muito fiéis ao Império, acabaram se decepcionando com a monarquia, embora não fossem muito fortes por ocasião da abolição, nem quisessem a República. Há outro fator de desgaste, que também foi decisivo para o fim do Império: as desavenças entre a monarquia e a Igreja. Nos últimos anos do reinado de Dom Pedro II, ocorreu um choque sério entre a Igreja e o Estado. Um movimento de renovação da Igreja Católica, comandado pelo Vaticano, em todas as partes do mundo, buscava dar mais autonomia ao clero em suas relações com o Estado. Isso se chocava com o velho sistema do padroado, adotado no Brasil, no qual o imperador controlava o clero. Mas talvez o fator mais importante na queda da monarquia tenha sido a pressão de grupos da elite civil pela autonomia das províncias, aliada à pressão por um novo regime, por parte do Exército.

Entrevista com Boris Fausto: Disponível em http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/historia/entrevista_1a.asp, acesso em 13 jan 2009.

Império - I



"A história é vital para a formação da cidadania. Ela nos mostra que, para compreender o que está acontecendo no presente, é preciso entender quais foram os caminhos percorridos pela sociedade brasileira."


Entrevista: Boris Fausto/tvescola

Houve mesmo uma Independência do Brasil?
Quando a gente fala da Independência do Brasil, surge logo essa questão importante: afinal de contas, será que o Brasil não trocou simplesmente de dono? Antes era Portugal, depois de 1822 passou a ser a Inglaterra. De fato, a Independência e a abertura dos portos, antes dela, são fatos que favoreceram imensamente a Inglaterra, a grande potência européia da época; mas isso não significa que tenha havido uma simples troca de dono. A Independência obrigou à constituição de um Estado brasileiro, com seus órgãos de representação, suas instituições, seus poderes, suas relações com o mundo externo. Embora seja verdade que a Inglaterra ganhou ainda mais influência, não é menos verdade que o significado do Brasil independente ia além da relação com a Inglaterra, ou com Portugal. Mas a Independência não saiu de graça: o país foi obrigado a pagar uma indenização a Portugal para garantir seu reconhecimento pelas potências européias e, para tanto, recorreu a um crédito aberto na Inglaterra. Outro ponto importante é que, em comparação com as repúblicas sul-americanas, a Independência brasileira se deu de forma até certo ponto pacífica, embora tenha havido luta, principalmente na Bahia.

Qual a diferença entre a Independência do Brasil e das ex-colônias espanholas?
O fato é que, enquanto a ex-colônia portuguesa se manteve unida, as antigas colônias espanholas da América do Sul se dividiram em vários países. Não existe uma explicação fácil para isso. O que se pensa, em geral, é que a elite brasileira, principalmente os presidentes de província, circulava por todas as regiões. Em outras palavras, existia no Brasil um esboço de direção burocrática que ajudou a manter unido o país. Ao mesmo tempo, um interesse muito forte estava por trás da manutenção da unidade, pelo menos em relação às principais províncias – esse interesse era a escravidão. Para manter e garantir os negócios da escravidão, era importante que o país ficasse unido. Mas não foram poucos os problemas, as revoluções, entre a Independência e o ano de 1848, quando ocorreu em Pernambuco a Revolução Praieira.

Por que se fez aqui uma monarquia, entre repúblicas?
Isso tem muito a ver exatamente com a força da monarquia, ligada à vinda de Dom João VI, quando a Colônia de certa forma se transformou em metrópole. Isso solidificou a idéia de manutenção da monarquia; e a passagem da situação colonial à de independência se fez pelas mãos de um príncipe português, que foi Pedro I.

Quais eram as características da monarquia brasileira?
Ela não era igual às grandes monarquias européias, pois não houve uma aristocracia de sangue. Quer dizer, não havia uma nobreza com títulos e privilégios transmitidos por herança. Os títulos se esgotavam com a morte do titular, fosse ele barão, conde etc. Esses títulos eram um instrumento político muito importante: ao concedê-los, o imperador conferia prestígio e formava um círculo de fiéis.

Como ficou o Brasil, com a Independência?
Logo depois da Independência se elegeu a Assembléia Constituinte, que começou a preparar a constituição. Mas foi grande a desavença entre Dom Pedro I e os membros eleitos da Assembléia, o que resultou em sua dissolução por parte do imperador; ele próprio assumiu a incumbência de dar ao Brasil uma constituição. A primeira Constituição brasileira nasceu de forma autoritária, imposta pelo monarca à sociedade, de cima para baixo.

Que pontos se destacavam na Constituição imperial de 1824?
Ela deu ao imperador muitos poderes, entre os quais o mais importante talvez tenha sido o chamado poder moderador. Esse poder lhe permitia, por exemplo, nomear senadores vitalícios: recebia uma lista de três nomes e escolhia de acordo com sua vontade. Também lhe dava a possibilidade de dissolver a Câmara. Outro ponto importante da Constituição era a organização do sistema eleitoral, censitário e indireto. Censitário significa que as pessoas, para poder votar, deveriam ter um determinado nível de renda. Além disso, o voto era indireto, ao contrário do que acontece hoje. Os brasileiros votavam em um grupo de cidadãos com determinadas qualificações, e estas pessoas elegiam a Câmara dos Deputados. Naturalmente, ninguém elegia o imperador, que permanecia no poder até a morte. Outro traço do sistema eleitoral era o fato de os analfabetos poderem votar. Não se tratava propriamente de espírito democrático, mas o número de analfabetos era tão grande que, se eles não votassem, o processo eleitoral na prática seria insignificante. Em grandes linhas, essa legislação eleitoral vigorou até 1881, quando ocorreu uma mudança importante. A chamada Lei Saraiva introduziu a eleição direta e, ao mesmo tempo, acabou com o voto do analfabeto.

Que fatos marcaram o Brasil Império?
Do ponto de vista político, houve no Brasil Império três períodos: o Primeiro Reinado, com Dom Pedro I como imperador, até 1831; o período da Regência, até 1840; e o Segundo Reinado, com Dom Pedro II, até a proclamação da República, em 1889. O primeiro período foi marcado por disputas entre brasileiros e portugueses em torno do controle do país. Em razão dessa disputa, e também tendo em vista seus interesses na sucessão do trono de Portugal, Dom Pedro I acabou abdicando e voltando para a Europa, em 1831. Os portugueses ainda viam o Brasil como uma espécie de colônia. Por exemplo, os postos mais importantes do Exército brasileiro eram ocupados por oficiais portugueses.

Como se formou o Exército brasileiro?
A história da formação do Exército no Brasil independente é longa. Nos primeiros tempos, os oficiais portugueses ocupavam os postos mais altos e, na base, havia uma massa de gente recrutada à força, ou que ia para o Exército só para ter o que comer. A monarquia valeu-se também de mercenários, contratando na Europa pessoas pobres que, muitas vezes, vinham para o Brasil pensando que iam ganhar terras e na realidade eram enquadradas no Exército.

E quanto à Regência?
Na Regência, o Brasil foi governado por pessoas da elite, enquanto se esperava a maioridade de Dom Pedro II, que acabou assumindo o trono com apenas 14 anos. Uma das coisas importantes da Regência foi a tentativa de descentralizar o poder. Os regentes procuraram dar mais força às províncias, diminuindo a dominação do poder central; queriam atender principalmente aos interesses das grandes províncias – Rio de Janeiro, São Paulo, que começava a crescer, Minas, Bahia, Pernambuco e poucas mais. Entre as medidas tomadas para isso, suspenderam o poder moderador – ninguém mais podia dissolver a Câmara. Também suprimiram um órgão que existia no Primeiro Reinado, o Conselho de Estado, uma assembléia de gente idosa para a época, pois era preciso ter mais de quarenta anos. Na linha da descentralização, foi criado logo no começo da Regência um corpo militar, a Guarda Nacional. Pelo menos no papel, ela seria formada por todos os cidadãos das províncias, que teriam por obrigação possuir armas e seriam convocados em caso de revoluções, ou de ameaças às fronteiras.

Que tipo de revolução ocorria?
Desde a Independência, até mais ou menos 1848, houve no Brasil uma série de revoluções contra o governo central. Eram movimentos muito diferentes entre si e geograficamente distantes. Por exemplo, a Cabanagem ocorreu no Pará; a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Os integrantes dessas revoluções também não tinham características semelhantes. A revolução do Pará mobilizou principalmente uma grande massa de índios e descendentes de índios. Já na revolução Farroupilha os revolucionários eram brancos e os líderes eram sobretudo pessoas da elite. As reivindicações até certo ponto variavam, mas tinham em comum a forte oposição ao governo central. Em alguns casos também se colocou em questão a natureza do regime, propondo derrubar a monarquia e instalar um governo republicano. Os revolucionários gaúchos criaram a República de Piratini, de curta duração. Em Pernambuco a revolta teve continuidade; a província já se insurgira contra os portugueses em 1817, voltou a se rebelar no Brasil independente, com a Confederação do Equador, e prossegue nesse clima de fermentação revolucionária até 1848, quando praticamente se encerra o ciclo de revoluções.

Como terminaram as Regências?
A Regência terminou principalmente por pressão das elites das grandes províncias, que perceberam a necessidade de um comando centralizado. Em conseqüência, foi decretada antecipadamente a maioridade de Dom Pedro II, e iniciou-se assim o Segundo Reinado.

Quais os fatos mais importantes do Segundo Reinado?
O longo Segundo Reinado foi o período mais importante do Brasil no século 19. Até então, não se pode dizer que houvesse um sistema político bem definido. No tempo de Dom Pedro I houve o “partido brasileiro” e o “partido português”, que não eram bem partidos, mas sim correntes de opinião. Nos primeiros anos do Segundo Reinado foram restaurados o poder moderador e o Conselho de Estado e se formaram os dois primeiros grandes partidos brasileiros, o Partido Conservador e o Partido Liberal.

O que caracterizava os dois grandes partidos brasileiros?
É comum se dizer que representavam a mesma coisa. Isso só é verdade em parte, pois se eles de fato representassem a mesma coisa, por que disputariam por tantos anos o poder e se dividiriam tanto? O Partido Conservador era formado pela burocracia imperial, por altos funcionários da Corte, que se aliavam aos grandes produtores de café da província do Rio de Janeiro. Os conservadores contavam também com apoio principalmente na Bahia, e também em Pernambuco. O Partido Liberal representava os interesses de São Paulo, Rio Grande do Sul e parte de Minas Gerais. Durante certo tempo, os liberais foram favoráveis à descentralização do poder, enquanto os conservadores reforçavam a Corte e sustentavam a centralização do poder nas mãos do imperador.



O que foi mais relevante no reinado de Pedro II?
No plano da política externa, houve a Guerra do Paraguai, conflito em que o Brasil teve papel predominante. Foram construídas as primeiras ferrovias, expandiu-se a exportação de um novo produto, o café, e uma grande questão percorreu a sociedade: a escravidão. A partir de um determinado momento,ficou muito claro que a escravidão ia acabar. O problema era saber como liquidar a escravidão no Brasil. Após uma série de leis – do Ventre Livre, dos Sexagenários – chegou-se à Abolição, em 1888.

Fonte:
Entrevista com Boris Fausto: Disponível em http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/historia/entrevista_1a.asp, acesso em 01 jan 2009.

A Família Real no Brasil



Quando o sistema colonial entrou em crise?

No começo do século 19, por um conjunto de razões. Teoricamente, todas as transações comerciais da Colônia com o mundo só poderiam ser feitas por intermédio da Metrópole. Na prática, isso furou. Portugal entrou em decadência e teve de aceitar a presença de outras potências, particularmente a Inglaterra, no comércio brasileiro. O sistema colonial trazia embutido o tráfico de escravos. Quando a Inglaterra entrou em um surto industrial e buscou criar um mercado de mão-de-obra livre, o tráfico de escravos começou a ser quebrado pelos ingleses. Ao mesmo tempo, a Inglaterra tratava de liberar o comércio internacional para poder extrair dele plenas vantagens, sem depender de intermediários. Essas transformações vieram acompanhadas de um movimento de idéias liberais, tendo como objetivo alcançar a autonomia, e mesmo a independência das antigas colônias.

O que mudou com a chegada da família real?

A vinda da família real para o Rio de Janeiro, no começo do século 19, foi um fato político da maior importância para a Independência do Brasil. No jogo das potências da Europa, Portugal estava acossado pelos franceses, por Napoleão, que invadira seu território. Ao vir para a Colônia, Dom João VI e sua corte passaram por Salvador e se instalaram no Rio de Janeiro, que naquela altura já era a capital. Há quem diga, numa frase muito feliz, que de certo modo a Metrópole virou colônia e a Colônia virou metrópole. Com a presença da corte, o Rio de Janeiro se transformou, em muitos níveis – arquitetura, pintura, habitação, novos costumes etc. No plano das relações internacionais, um dos fatos mais importantes relacionados com a presença de Dom João VI foi o reconhecimento, com todas as letras, da liberalização do comércio internacional. Quer dizer, o Brasil teve seus portos abertos às nações amigas – e a gente deve pôr isso entre aspas, porque nesse caso falar em “nações amigas” se referia basicamente à Inglaterra. A partir daí a Inglaterra pôde ter legalmente acesso direto aos portos brasileiros.

E com a volta de Dom João VI para Portugal?

A forma pela qual foi decidida a volta de Dom João VI para Portugal influiu no processo de Independência do Brasil. A permanência de seu filho, o futuro Dom Pedro I, representou um passo para a transição de colônia a país sem grandes abalos, conservando-se a forma monárquica.

Como ocorreu a Independência?
No processo da Independência existiram duas linhas. Uma mais revolucionária, de transformação, que aparece nitidamente na Revolução de 1817, em Pernambuco, com a presença de Frei Caneca e outras figuras. Outra linha, a conservadora, queria fazer uma transição “transada”, sem muitos abalos. Esta linha, das elites fluminenses e da corte no Rio de Janeiro, foi a que triunfou.

Que idéias eram defendidas para um novo Brasil?

Logo depois da Independência, formaram-se “partidos”, entre aspas, pois não eram organizações como as que conhecemos hoje. Basicamente, eram correntes de opinião das elites situadas nos grandes centros, em particular no Rio de Janeiro. Um setor conservador queria manter a forma monárquica e, além disso, concentrar o máximo de poderes nas mãos do primeiro imperador, Dom Pedro I. Era a tendência absolutista, que queria dar poderes absolutos ao rei. Contra essa corrente estavam os monarquistas liberais. Eles queriam reduzir o poder do imperador e dar força à Assembléia Geral Imperial – que hoje poderíamos chamar de Congresso –, convertendo-a em um órgão que controlasse aquele poder. Essa gente queria, ao mesmo tempo, garantir as liberdades públicas, as liberdades de expressão e de manifestação de pensamento.



O texto acima é a transcrição de entrevistas produzidos pela TVEscola/MEC com o prof. Boris Fausto. Disponível em Disponível em http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/historia/entrevista_1a.asp, acesso em 13 janeiro 2009.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A vida dos escravos numa fazenda de Café



As fazendas vassourenses, possuiam em média de 80 a 100 escravos. A vida deles era regida pelas necessidades da cultura cafeeira, a manutenção da sede e das senzalas, a produção de víveres e o beneficiamento do café. O dia de trabalho do escravo era longo. Começava antes do nascer do sol prolongando-se, freqüentemente, muitas horas depois do rápido crepúsculo do planalto do Paraíba

As cozinheiras se levantavam antes do sol nascer para acender o fogo embaixo dos caldeirões de ferro; em breve o cheiro do café, da rapadura e do angu de fubá flutuavam no ar. O sol ainda não havia nascido quando o feitor ou um de seus capatazes negros se encaminhava para um canto do terreiro para tanger o sino de boca larga. As badaladas do sino de ferro fundido; às vezes, o toque de uma buzina ou o rufar de um tambor percutia pelo terreiro, penetrando nos pequenos cubículos onde dormiam os casais de escravos e nos dormitórios separados, onde se amontoavam os escravos solteiros. Saindo de sua modorra de cinco ou oito horas, arrastavam-se de suas tarimbas de tábuas cobertas de esteiras; os trabalhadores da lavoura pegavam as enxadas e as foices penduradas no beiral. No grande tanque, ao lado da senzala, molhavam o rosto e a cabeça, friccionavam os braços, as pernas e os tornozelos. Escravos atrasados apareciam à porta da senzala cantarolando o jongo que satirizava o feitor tocando o sino :

O diabo do bembo me acordou
Não tem tempo nem pra botoá camisa, diabo do bembo.

Agora, à medida que o terreiro lentamente se enchia de escravos, alguns de pé, formando fila, e outros acocorados , esperando a reza, o senhor aparecia na varanda da casa-grande. "Um escravo recitava a reza que os outros repetiam", relembrava um antigo escravo. Todos tiravam o chapéu e ouvia-se um "Bendito-Seja-Nosso-Senhor-Je-sus-Cristo" ao qual alguns escravos respondiam um confuso "Nosso Senhor Jesus Cristo", outros um lacônico "Kist" Do senhor, na varanda, vinha a resposta: "Seja Ele Sempre Louvado". O feitor fazia a formatura; quando um escravo não respondia depois de dois chamados o feitor corria para a senzala à sua procura.

Quando as ordens do dia tinham sido dadas, distribuindo as várias turmas entre os diversos talhões, escravos e capatazes se dirigiam para a cozinha dos escravos para tomar café com angu.

Os primeiros clarões da aurora despontavam no céu quando os escravos se encaminhavam para o trabalho. Uns poucos iam para a casa de vivenda; a maioria punha a enxada no ombro, e, velhos e moços, homens e mulheres, dirigiam-se para o trabalho da carpa que varava o ano, seguidos pelos capatazes que vigiavam os mandriões. As mães carregavam as crianças de peito em pequenos jacas presos às costas, ou escarranchados sobre um quadril. As crianças de quatro a sete anos se arrastavam com as mães, as de nove a quinze anos seguiam ao lado. Se os talhões em que trabalhavam eram distantes da sede, levavam também a comida necessária para duas refeições - seja num veículo puxado por uma junta de bois, que os escravos denominavam maxambomba, seja em caldeirões de ferro ou em cestas de vime, balançando na ponta de um pau, ou em gamelas de madeira sobre tábuas que os escravos carregavam ao ombro. Alguns levavam alimentos suplementares em pequenos sacos de pano.

Disseminados pelo cafezal, havia abrigos constituídos de quatro postes com cobertura de sapé. Na aba do morro coberto de cafeeiros, que subiam em fileiras verticais, separavam-se os escravos em pequenas turmas. Velhos e velhas formavam uma turma que ficava ao lado do rancho; as mulheres formavam outra ; os homens e a rapaziada nova formavam uma terceira.

Deixando moleques e meninas brincando aos cuidados da cozinheira e de seus ajudantes no rancho, eles iniciavam o dia de trabalho. Quando o sol esquentava, os homens tiravam as camisas ; as enxadas subiam e caíam lentamente à medida que os escravos procediam na carpa morro acima. No sistema de capinação por turmas, chamado corte e beirada, os melhores trabalhadores eram colocados na beirada dos talhões, cortador e contra-cortador de um lado e o beirador e contra-beirador do outro. Esses quatro trabalhadores escolhidos entre os melhores davam o ritmo do trabalho, servindo de exemplo aos trabalhadores mais lentos que ficavam de permeio. Quando uma carreira de café terminava repentinamente numa depressão da encosta, o escravo gritava para o feitor "joga uma outra carreira no meio" ou "precisamos uma outra carreira" ; o feitor passava a informação para o chefe de turma na beirada do talhão e esse se deslocava para a carreira contígua, dando assim ao escravo uma nova carreira para carpir. Dessa maneira os cabeças de turmas se conservavam sempre na extremidade.

As diversas turmas freqüentemente trabalhavam a pequena distância umas das outras e, para imprimir ritmo às enxadas e transmitir comentários sobre o pequeno mundo em que se achavam circunscritos, no qual viviam e trabalhavam - suas próprias fraquezas, as do senhor, dos feitores e dos capatazes - o "mestre cantor" de uma turma iniciava o primeiro verso de um jongo. Sua turma repetia em coro o segundo verso, e carpiam todos no mesmo ritmo, enquanto o mestre cantor da turma ao lado tentava responder ao desafio. Um antigo escravo, ainda com fama de hábil cantor de jongo, informava que "o mestre batia no chão com a enxada, os outros escutavam enquanto ele cantava. Depois respondiam." Acrescentava que quando o jongo não ia bem o trabalho não rendia. Os jongos cantados em língua africana se chamavam quinzumba; os cantados em português, mais comuns à medida que desapareciam das turmas os negros velhos nascidos na África, chamavam-se visaria. Parando aqui e ali para dar uma lambada nos indolentes, dois capatazes fiscalizavam as turmas, percorrendo de um lado para outro as carreiras de café e gritando "vamos, vamos" ; quando a fiscalização relaxava, os trabalhadores se aproveitavam para diminuir o ritmo do trabalho enquanto escravos e escravas acendiam seus pitos ou se apoiavam à enxada para enxugar o suor. Para racionalizar o desejo de resistência às lambadas e aos gritos do capataz, inventaram a história de que um escravo mais velho e mais vagaroso nunca devia ser ultrapassado em sua carreira de café ; do contrário o escravo velho podia arremessar a cinta na carreira de um mais moço, e este seria mordido por uma cobra quando dela se aproximasse. O feitor ou o próprio senhor, vestido de branco e de botas, passeava a cavalo pelo cafezal para fiscalizar o trabalho. Os escravos atentos, fingindo que olhavam para o sol e disfarçando, diziam com afetação, "olha o sol quente vermelho", ou misturavam palavras africanas comuns, do vocabulário dos escravos, com palavras portuguesas como "Ngoma vem aí" para avisar os companheiros que fingiam trabalhar com afinco. Quando o capataz via o fazendeiro aproximar-se, comandava à turma "dêem a bênção", a que os escravos ansiosos por uma pequena folga atendiam, perfilando-se; ou, tirando os chapéus, se benziam, respondendo "vas Cristo." Encerrando a saudação ritual, o senhor também tirava o chapéu, dizia "louvado seja para sempre", e continuava. Imediatamente diminuía o ardor do trabalho.

Ao grito de "almoço, almoço" ou ao toque de uma buzina que vinha do rancho, lá pelas dez horas, os escravos parceiros e os capatazes desciam. À sombra do rancho, passavam em fila diante da cozinheira e de seus ajudantes, estendendo as suas cuias. Nas fazendas mais prósperas os escravos tinham, às vezes, pratos de estanho. Neles a comida era depositada ; os capatazes e um escravo favorito comiam de lado enquanto os outros se sentavam ou deitavam no chão. As mães aproveitavam o descanso para amamentar os filhos... Meia hora depois a turma voltava para o trabalho. A uma hora da tarde havia uma breve pausa para o café, ao qual os escravos freqüentemente acrescentavam o resto do angu servido ao almoço. Nos dias frios e chuvosos substituía-se o café por pequenas doses de caninha fabricada na própria fazenda. Alguns antigos escravos afirmavam que o fazendeiro freqüentemente mandava os capatazes distribuir-1hes cachaça enquanto trabalhavam, para que não interrompessem o trabalho. A janta era servida às quatro horas e o trabalho retomado até o cair da noite quando o capataz gritava "vamos largar o serviço"; As turmas de escravos voltavam então para a sede. Zaluar, o português romântico que visitou Vassouras, descreveu a volta do trabalho nos cafezais: "é a hora solene do crepúsculo. Ao longe os sinos da fazenda tocam a ave-maria. (Do alto dos morros cai a sombra da noite ao passo que as estrelas aparecem no céu... Do morro desce o capataz taciturno, e na frente os escravos, de volta para casa". Mais uma vez os escravos faziam a formatura no terreiro onde os trabalhadores da lavoura se reuniam aos companheiros que trabalhavam na sede.

Adaptado de: Stein, Stanley J. A grandeza e decadência do café, Editora Brasiliense, São Paulo 1983.